quarta-feira, junho 23

comandante surdo

qual mesmo o sentido de se querer justo esse amor que é surdo?

ele não tem ouvidos para o que lhe ordenamos,
é um rosto feito de boca e olhos. Fechados para a alma do outro, abertíssimos para o coração desse mesmo pobre diabo, que os admira boquiaberto. Não consegue negar.
são belos os olhos do amor.
o amor não cheira o gosto salgado das lágrimas do outro, não não.
ele apenas sente com delícia seus poemas apaixonados e regojiza-se vitorioso.

é ele que queremos e é a ele que aceitamos quando volta sem permissão.
sem aviso nem data marcada.
sem a menor preocupação. ele não ouve se nossos passos já lhe ultrapassaram.
se julga nosso semelhante,
sem querer enxergar que é carrasco.

E VOLTA
dotado de tanta despretensão quanto o mais ambicioso dos corruptos.
e desvirgina mais uma vez os olhos do outro, que tinham reaprendido a olhar a vida com inocencia.
e profere mais uma vez as palavras malditas, que tiram o sono do outro e pousam-no na estante dourada e macia do amor.
e surdo, guarda sua cobaia de (alguma)estimação, na gaiola suja que disfarça de palácio.
e não deixa espaço para não, não há lugar em seu rosto de beleza estática e gelada para perguntas, não sabe responder. só sabe cativar, sem garantia nenhuma. aprendeu a convencer a cada nova vez que se repete, que é aquilo que o outro quisera e imaginara desde o princípio.
e o segura.

E VAI
desmoronando com sua partida a prateleira, a escada, o coração, a boca, os ouvidos, os olhos mais uma vez vidrados e o coração de novo tornado em pedra.
deixando tudo o que não se quer, todas as cicatrizes inescondíveis que atiçam a memória.
queimando no seu gado marcado o sorriso maligno, a boca de dentres podres e satisfação venenosa. mais uma vez ele venceu.
como sempre, ele venceu.
elegante e sorrateiro, ele venceu e sua ida já o levou para longe.

e o outro, e o amor, e qual seu fim?

não termina.
quando se cansar de ir e vir, e por fim largar as cartas, soltar a âncora, pronto e confiante de que atracou seu grande navio repleto dos tesouros de pérolas que arrancou das ostras de pureza dos outros,
não estará em porto seguro.
se tornando o proprio outro, perdido em um rosto-rodamoinho maior do que seu sorriso-barco,
girando por tempo indeterminado em alguma parte do fatídico mar, muito mais poderoso do que seus ouvidos surdos e muito menos suscetível a mudanças do que seus olhos calculistas e deliberados, e dissimulados.

se um dia o barco não naufragar
sairá cheio da colérica vingança com que foi inundado.
e sua tripulação de olhos e bocas e palavras sórdidas continuará em busca dos ouvidos que o crocodilo engoliu,
exausta e persistente
inevitavelmente(será assim alguma coisa?) desejando nunca ter contaminado o outro com suas doentias vilanidades de amor.

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