Não consigo, e verdadeiramente não desejo, deixar de me
lembrar, de sentir, de ser o rugido do Leão que me rodeia e atravessa tão
deliciosamente, com sua companhia tão perfeitamente silenciosa que é como se
fossemos o que somos, uma coisa só, ele me revela o leãozinho que a vó cantou,
que a mãe cantou, que a juba evidenciou, que o olhador de olhos apontou, ele me
revela leão também e não sei se necessariamente leoa, mas leãozinho. Ele me
revela assim por estar sempre tão perto e fazendo isso de todas as formas não
físicas de que tive notícia. Ele repudia a obviedade do amor-toque. E continuo
admirando-o. Não temo que o que sei dele não seja nada, que o dia desdobrado em
milhares que anos, infestados de quimeras e galáxias que dançaram, musicaram,
morreram e nasceram, não cronologicamente e sim na sua ordem magnificamente
bagunçada, sentida, inventada, harmonia de improviso, de explosivo, eu não temo
que esse dia nada valha. Assim nos carregamos, ele me leva e me é, os braços
fundidos no carinho eterno do silêncio, das lições silenciosas, das lições. Do
amor aprendiz. O nome do índio bonito que faz pintura de jenipapo no rosto é
aprendiz em pataxó, mas não lembro a palavra.
Pensando bem isso é mentira.
Agora que temos uma bem possível materialização próxima dessa
caminhada envolvida/envolvente (esse abraço de urso do leão que imaginescrevi é
algo como a caminhada do amor que carrega o complemento desacordado pela praia
debaixo de chuva, debaixo de sol, longa caminhada de naufrágio, é o sufrágio
universal das almas que se elegem, aquelas duas almas uma, aquele mundo todo, a
vitória), há um medo que não chamarei assim, porque não o é bem assim.
É um querer pelo temor que quase que imediatamente é
sussurrado para trás, para longe, vai ventado, se desinventa. É como se a
mistura que se tornou todo nosso material genético, é como se a célula-mãe que
nos tornamos me ensinasse repleta de sua gordeliciosa maternidade, gorda do
vazio de sempre ansiar por caber-se num novo filho, é como se essa raiz de vida
me abraçasse também na praia, e a areia é uma bênção. E da esfoliação desse
amor de mãe que somos eu, o Leão, a praia, desse amor de mãe desse amor (só
atingindo a incondicionalidade algo merece esse nome bonito, algo atinge o
poder integral dessa palavra e por isso cabe-a aqui, pelo que existe agora
nessas palavras, na realidade característica de qualquer forma pensamento antes
ou durante sua fase física, material, palpável, que pode vir ou não – o
arrebatamento é o mesmo), disso nasce algo semelhante a uma certeza, nasce uma
confiança divina. Nasce uma saudade, brota ela toda a flor de toda a pele.
Pele. Sensibilidade astronômica. Dançamos esta noite nos caminhos dos
céus.
Não quis dizer que me lembrava de ti e quando a mãe me
perguntou brincando “Quem é mesmo que mora aqui?” eu desfiz o sorriso no rosto
dela mentindo que não sabia. Mentindo que não te sabia, e queria enganar a
quem?! Deuses!
1º: Passei na tua
rua
Foi uma dessas vontades que inexplicavelmente decidem se
tornar realidade sabe, depois de muitas visualizações mentais de como a coisa
toda se daria e eu chegando e seria tudo muito sorridente e muito natural, nos
veríamos velhos amigos depois de tanto tempo e com que bela bagagem pesaria
docemente cada palavra dita, cada afeto trocado em sorrisos calmos e muitos
gestos de criança, seria ótimo, seria lindo, e talvez depois algum momento de
casal. Talvez as fotos em que me pude ver. Talvez tudo o que poderia ter sido.
Talvezes, mas uma certeza sim. E por algum truque de música virei a esquerda
num caminho que era reto, que era certo, parei.
Toquei e não estavas.
Sentei e dei-me um tempo para te esperar.
Senti muita vergonha das pessoas da rua, pensando serem
todos seus amigos ou então tua família chegando à casa. Não eram. Escondi-me atrás
de alguns carros. Se alguém gravou poderíamos rir juntos de tudo isso, eu,
você, @ gravad@r misterios@. Ainda poderemos, diga-me quem foi! Mandaremos pro Faustão,
mandaremos pra internet, ficarei
conhecida como a querida medrosa do passado, a timidez da volta dos que não quiseram
ir, e por isso até hoje não sabem se foram ou não.
E vi um bilhete dizendo que estavam na pizzaria, te
esperando. Não quis atrasar tua família, passou a vontade. Antes da meia hora
que tinha me oferecido para esperar-te, levantei-me, fui para casa.
2º: Aparecestes!
Sim, porque eu chamei.
Mas mais do que isso, sim, porque eu estava pronta e não
teria vergonha de minhas roupas hippies, de meus quilinhos a mais. Senti-me
humana e aí aparecestes, na exuberância quase desumana de tua fisicalidade
impecável. Aí tua manifestação mais óbvia da divindade, querido curador.
Pitar-te-ia num retrato, num quadro, num pôster, em paredes e paredes, quantas
quisesses deixar! Deveríamos fazer fotografias um do outro, seria riquíssimo, e
não é preciso! E conversamos e senti aquilo tudo um brilho só, e parece então a
mim que se encontrou, e te admiro de um jeito interno que desconhecia até
agora. És uma pessoa dentro desse corpo, com quanto alívio sinto essa sua
profundidade na distância de uma conversa poética de depois do almoço. Sorri o
resto do dia.
3º: Matei uma tal
chama
Pensei que devia tentar de novo numa outra noite dessas, era
um pouco mais tarde, talvez já tivesse acabado seu horário de exercício, e
passei pela rua novamente. Sem pedrinhas de brilhante dessa vez, sem mirabolar
finais felizes, sem as concretas projeções futuras e desesperadamente
esperançosas como o era até então, a ilusão que o medo da não distância
provoca, à ela o fogo. E foi o que me aconteceu, bem em frente à sua casa, um
pedaço de tronco ardia. Lá onde eu quis me sentar para te esperar [e agora
penso que posso estar confundindo os tempos e esse 3º na verdade foi parte do
1º, mas não me faz diferença nesse momento essa chamada ordem humana que
conferimos ao tempo, uma criação imperfeita como tudo que somos nós], lá tinha
um pedaço de árvore queimando. A reminiscência do que fomos, do que fui por nós
dois, do que quis que fôssemos, do que sonhei mais de uma vez que ‘seríamos’,
da imagem de você que morou em mim por mais tempo do que eu gosto de admitir. A
verdade talvez seja que eu não quis me dedicar a me curar dessa pessoa que me
aconselhava a alvejar o cachorro morto que há tempos já era esse “amor”. Talvez
nunca tenha existido esse nós que eu projetei com tamanha ilusão de certeza.
E aí não me sentei. Remexi o tronco até que ele parasse de
queimar. Apaguei o fogo. A sensação foi imediatamente de mesmo efeito do
antibiótico, e sentia-me livre, curada, as amarras soltas, barco velejante,
senti-me indo para casa. Com cada letra disso.
4º: Passeamos
Depois num outro dia qualquer de dia resolvi parar. Esperei
que acabasse tua aula de inglês, te esperei pegar a bicicleta, te dei o recado
do amigo da caminhonete. Impressionam-me como aí ainda me incomodavam as
possíveis quaisquer formas em que pensassem para nos conectar, com o nome que
pensariam dar-me em relação em você, com a possibilidade de que se tornassem
verdade numa segunda mente aqueles meus desejos de “nós” que permaneceram
secretos, que pena. E isso é claro que não fazia sentido nenhum, então saístes
e te vi humano! Completamente humano e nu, e carregado de todas as mesmas
dúvidas de nossa idade quase gêmea, das prisões que nos prendem a tantos de
nós, infratores da verdade com que a criança brinca suave, pegos de primeira
surpresa naquele momento em que insistimos em investir-nos de qualquer peso,
que por definição não nos pertence. A criança grita por seu direito de nascer
em nós. E senti a tua e como a sufocavas. Não soube então o que agora começo a
sentir, que há vida além desse ‘nós’ imaginário, que realmente a fraternidade
aqui pode acontecer. E que outro bom desejo para esse ano que vem.
Chega de novo esse novo fim de um ano imenso, turbulenta,
atropeladamente, me re-atropelando das duas formas mais palpáveis, físicas, e
retorcendo, invertendo, basicamente recriando muito do pouco que já armazenei
desta vez. Como a prova real de que precisava e preciso para poder continuar
minhas somas, minhas multiplicações, minhas contas mágicas de amor. A
penitência foi a mais secreta, a mais obscura, a mais profunda prisão, da qual
jamais nos divorciaremos completamente até a visita da nobre dama que palita os
dentes, como hoje me disse Lya Luft num artiguinho seu. Fiquei em reclusão
domiciliar, em disfarce do mundo, cortei temporariamente meu cordão umbilical
com Deus, com a fonte-matriz-mãe-pai, com a natureza que eu re-descobri ser,
para que pudesse voltar desejosa, voltar ansiando o primeiro ar depois do quase
afogamento, que reconforta e preenche os pulmões do maior aconchego, do
vislumbre da magnitude que é a chance de se viver, escancarar as portas, romper
as janelas, despedaçar as amarras, bradando gloriosamente, por toda a terra, a
sede de escadas, a própria humanidade: fisicamente limitada e infinitamente
potente.
Fisicamente limitada.
De várias formas.
Aceitamos estar aqui, manifestos nessa forma densa, desde o
momento em que cedemos o espaço atemporal de nossas luzes ao que cabe no
cubículo de uma cápsula de humanidade (bela e poderosa, é verdade!).
Haverá desafios, poderá haver aprendizados.
Indrinha já me disse e não a entendi, Mãezinha já me disse e
não entendi. Agora com mais esse ano, com mais essa volta saudosa, com mais um
ano de estar em Maringá e coisas misteriosas me levarem ao inesperado, ao
compreensível-daqui-a-pouco, algum brilho diferente pôde ser decifrado. A
esfinge treme. É que volto à parte de onde partem todas as transformações
efetivas – as afetivas, ao centro de toda a capacidade de uma mulher como de um
homem, volto ao coração (o coração chama, e não a bomba de sangue) e ao quanto
ele consegue ou não se exercitar, se doar em cores bonitas, se matar na entrega
total ao outro. Em mim dessa vez, nessa vinda, a etapa da amizade-colega já
escalou diversas montanhas, caiu, quebrou, vazou água salgada, e o mar moldou
belos rochedos de que gosto bastante.
Faltam ainda porções imensas de aprender o amor romântico,
se é que esse nome explica do que estou falando.
Agora estou pela primeira vez o mais pronta que já me senti para
agradecer à chance de ter começado a aprendê-lo. Não ter vergonha de cada erro
bobo e ridículo que cometi nesse pequeno percurso, já trabalhado de vento, de
areia, de mar, que é o mar em que precisa se jogar qualquer coração minimamente
vivo ou que se deseje vibrar como só se faz enquanto tal (Não sou eu quem me
navega/ Quem me navega é o amor
mar; Paulinho da Viola). Bastante doentia procurei me adequar ao instinto
talvez animal, provavelmente só feio da obviedade em que se formou; gasto já ao
revestir-se de previsibilidade e medo, uma fruta podre a interação – e não necessariamente
os atores –, uma peça fadada ao fracasso, arquivada repetitiva e furtivamente
em cada tentativa falsa de reencontro, de contorno, de junção do cristal
quebrado. Acho que sei o suficiente do que falo, sei pelo menos de quem falo, e
deixo às palavras a liberdade criativa que couber a quem quiser, mentalmente,
traduzi-las.
mil perdões ao/à autor/a, salvei só como Kiss.jpg
Enquanto se dava esse caminho lancinante, em meio ao
concurso que era essa competição tresloucada de esporte radical, na mentira
feia, dura e mais crua do que eu jamais consegui ver, de temer aquela vida
florida, de não me crer merecedora, de escolher não lidar com o que quer que
seja que me incomoda e incomodava, incomodava, doía, revirava-me o estômago e eu
varri as borboletas para baixo do tapete com medo de querer mata-las como eu me
afastei do parapeito tantas vezes com medo de querer pular ao invés de me dar
tempo para perceber o que era a vontade verdadeira, e respeitar o desejo de
naturalidade do afastamento. Não queria deixar o futuro ser futuro, e por isso
nada aconteceu inteiramente. Quebrei todas as bordas do quebra-cabeça. Auto-flagelo.
Tinha um amor aqui. Tinha sim. Tinha o amor aqui. Pulsando,
implorando, sincero e entregue como se deve ser para se transformar no próprio
nome. Era uma criança e era a coisa mais sábia que eu já vi. Era certeza
deslizando por cada brilho de satisfação, de alegria, nos olhos. E o medo, foi
sim o medo, foi sim a vontade de que o labirinto não fosse labirinto e eu pudesse
ter tudo às mãos como me garantiam as rédeas da monotonia, da solidão, nas
quais eu cavalgava rainha até então. Fugi do meu destino pela primeira vez de
que consigo me lembrar. E não quis nem soube valorizar a fraqueza que eu não
fui grande o bastante para admitir ter. Pairava a li toda a branca névoa do
cisne encantado, e eu quis a maldição, eu quis a escuridão do omitir, do
mentir, de comparar, de ceder ao meu primitivo querer controle, querer poder.
Isso já se repetiu. Aprendi ali o erro que é ter nojo da fraqueza, o erro que é
absorver a energia de aparente superioridade, que é na verdade uma das maiores
ilusões que se pode criar, prisão perpétua porque engolimos a chave. Hoje sinto
com cada bater de teclas desse teclado que arranco, que desintegro, que encravo
as unhas em todo o caminho que essa chave sujou dentro de mim, dentro de cada
partícula que escureceu em mim quando dessa tranca maldita, e regurgito esse
feto assassino e sangrento de arrependimento, de mágoa, de culpa, que plantei
aqui, que me afasta das chances que tenho de ser abraçada, que escrutina as
ventos que tentam soprar por minhas janelas até orgulhosamente encontrar alguma
sujeira que sirva de pretexto pra trancafiar toda a casa em sombra e penumbra.
E poeira. Festa de teia de aranha.
Teve um outro. Mas esse aprendizado, prova escorregadia de
amor, revelarei que foi meteórico. Assim o condeno ao impossível, ou só me cabe
imaginá-lo no impossível porque é mesmo coisa de outro mundo. Lembra-me apenas
o rosto de propaganda que vi, de quem abraça o produto e sorri, e há carinho
inestimável, inexpressível em palavras humanas ainda que a coisa seja uma venda,
um instrumento do diabo, há esse quê de inesgotável amor instantâneo nascido no
momento de reconhecimento tácito que é esse sorriso, que é o afago resignado e
querido de um animal de estimação. Chamarei ao leão, no suspiro já usual, amor
meteórico de estimação.
Agora o animal instintivo de atração irresistível, de luta
carniceira contra qualquer pureza remanescente não cabe mais aqui, ainda assim
há amor pela criatura ser o que é, e admiração, pois ela é também beleza e não
há vergonha nessa opinião. Foi amor aquilo? Agora é e posso dizê-lo livre, ufa!
Provavelmente essa compreensão se traduz em fraternidade e só.
Fruto dessa mesma primavera é o amor às saudades, todas
elas, e hoje principalmente essas dos primórdios, essas de cada acerto de
férias, leve, rural, leviano e de cada erro meticulosamente calculado na cotidiana
pressa imperfeita de uma cidade cinza que inaugurei em meu peito em germinação
ainda tão iniciante. Poxa vida. Abraço meus eus de cada um desses momentos e
sou tudo isso, e só posso querer bem a esses grandes mestres, ao meu primeiro
amor, posso sorrir e não é mais o riso desesperado de vergonha e a vontade de
dizer que nunca, aos vermes a borracha medonha com a qual quis me apagar com
cada tentativa em vão de eliminar de mim essa tatuagem. É claridade amar assim,
e que consigamos conservar cada chama do que fomos, do que somos, nesse ano que
vem, nessa vida que vem sempre, que vem indo e voltando, que é maravilhosa pelo
simples, complexo, desenhado à mão em renda virgem, pelo belíssimo fato de
existirmos só, sós, e juntíssimos, numa só coisa-luz.
"De tudo que é nego torto, do mangue, do cais do porto, ela já foi namorada... O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada. Foi assim desde menina, na garagem, na cantina, atrás do tanque, no mato. É a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos, dos moleques de internato. E também vai amiúde aos velhinhos sem saúde e às viúvas sem porvir. Ela é um poço de bondade, é é por isso que a cidade vive sempre a repetir:
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Um dia surgiu brilhante, entre as nuvens, flutuante, um enorme zepelim. Pairou sobre os edifícios, abriu dois mil orifícios, com dois mil canhões assim. A cidade apavorada se quedou paralisada, pronta pra virar geleia. Mas do zepelim gigante, desceu o seu comandante, dizendo: 'mudei de ideia. Quando vi nesta cidade tanto horror e iniquidade, resolvi tudo explodir. Mas posso evitar o drama se aquela formosa dama esta noite me servir.'
'Essa dama' era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Mas de fato, logo ela, tão coitada e tão singela... Cativara o forasteiro. O guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso, era dela prisioneiro. Acontece que a donzela, e isso era segredo dela... Também tinha seus caprichos. E ao deitar com homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre, preferia amar com os bichos. Ao ouvir tal heresia, a cidade em romaria foi beijar a sua mão. O prefeito, de joelhos. O bispo de olhos vermelhos. E o banqueiro, com um milhão.
Vai com ele, vai Geni!
Vai com ele, vai Geni!
Você pode nos salvar!
Você vai nos redimir!
Você dá pra qualquer um!
Bendita Geni!
Foram tantos os peidos, tão sinceros, tão sentidos, que ela dominou seu asco. Nessa noite lancinante, entregou-se a tal amante como quem dá-se ao carrasco. Ele fez tanta sujeira, lambuzou-se a noite inteira, até ficar saciado. E nem bem amanhecia, partiu numa nuvem fria, com seu zepelim prateado. Num suspiro aliviado, ela se virou pro lado e tentou até sorrir... Mas logo raiou o dia e a cidade, em cantoria, não deixou ela dormir.
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!
Então, não lembro bem se foi na quinta ou na sexta série, mas lá no Arquidiocesano, a Geni foi minha professora de laboratório por um ano. Eu era uma das primeiras da lista de chamada porque meu nome começa com A, obviamente. As mesas eram organizadas em ordem numérica então eu me sentava bem na frente da Geni, e pertinho, e todos só falavam numa coisa: ela cultivava esse péssimo hábito de cuspir enquanto dava aula. E então era só disso que se conversava quando mencionada aquela aula de ciências, aquele laboratório, mais bem equipado do que o deu muitas faculdades, onde poderíamos ter aprendido coisas incríveis, mas não aprendi, fiquei ouvindo as fofocas sobre a Geni. Mesmo sem concordar, sem entender, sem ter nada a dizer, eu contribuía com minha parcela diária de baboseiras.
Agora o importante foi o dia em que algum retardado descobriu essa arte do Chico e decidiu atribuí-la à nossa própria Geni, e então todos gritavam: "taca pedra na Geni, taca pedra na Geni!..." o resto você já sabe. E eu estava junto, e eu andava junto, e eu não contradizia esse bando de retardados, mal educados, desrespeitosos, invejosos, egocêntricos e egoístas, e eu os chamava de amigos e amigas, e queria ser como eles, e alisei meus cabelos para isso, e me calei para isso, e troquei os óculos por lentes de contato para isso, e calei-me perante seguidas injustiças e participei delas, por causa dessa minha fome de popularidade (quem me alertou foi a pessoa com quem eu menos conversava, George Kawashita, irmão de Juli, muito obrigada amigo!). Um dia, na festa da Alice, saí e fomos à casa de Caio porque Giovanna o beijava quando tinha vontades. E descemos a grande ladeira pra tocar a campainha da Geni e sair correndo de madrugada, e corremos descalços pra tacar a nossa própria pedrinha especialíssima em forma de som estridente na nossa querida mestra Geni. E eu dei risada, e tirei fotos naquela noite, e me achava super linda e gostosona. Uhul, que corpo hein garota!
Que ironia, que mentira, saber agora que tudo isso não valeu de nada. E que a verdadeira Geni sou eu. A vida tem mesmo jeitos muito lindos de nos apresentar às nossas próprias pessoas...
Passei do lado do quarto para ir buscar minha escova de
dentes,
E foi aí que algo me deteve.
Eu não parei de andar, mas houve um reconhecimento daquela
sensação avassaladora. Era um odor envolvente, calor doce, familiar, querido.
Queridos.
Vinha da porta entreaberta onde dorme se amando o casal.
Onde vive se amando o casal. Não há portas fechadas para o tamanho dos sorrisos
que apesar de fixos fisicamente em faces diversas são a mesma alegria. São
própria e justamente uma unidade de vida. Uma vida una. Era esse cheiro de
amor, inspirador, preenchedor mesmo só de ver de longe toda a harmonia com que
sorriem, todo o desejo com que dançam sem exposição, sem competição, um amor
puro, de criança, exemplar. Que honra tê-los nessa casa!
Gratidão.
E passada a garganta cortada pela pasta de dente, vos desejo
uma boa noite.
Antes de ir para lá passei
no Acampa Sampa, o que é pano para uma outra história que mesmo sendo útil para
a compreensão dessa, escolheu aparecer depois. Mas vai aparecer.
De coração repleto de
vida, e mesmo assim meio aéreo, naquela sensação de não-sei-o-que-faço-aqui, um
certo deslocamento, um certo descolamento, sem aparente motivo que não meu
desconhecimento da situação em dois sentidos: da história pontual e da dinâmica
de um ato.
No caminho pergunto à menina
do avião de papel, e dos sonhos lourinhos de olhos lutadoramente azuis sua
opinião. Gosto. Mas aquele gosto incompleto de quem busca o que não sabe bem o
que é, um gosto incapaz de matar a estranha angústia muda que aqui se abrigara.
Faculdade de Direito do
Largo São Francisco.
Já sentia boa a ideia de
ser lá. De conversar sobre a urgência da conversão desse franciscanismo
distante, unilateralmente proposto quando da separação entre os cursos, do
nosso verde e amplo exílio universitário “autárquico”,
e aceito por todos nós, quando nos abstivemos da interação.
Ainda assim o não sei que
faço aqui. Provavelmente melhor descreveria esse sentimento dizendo que não ei
que quero fazer daqui para frente. Não sei como me quero ver nesse movimento.
Não sei se me quero ver nesse movimento.
Conversa 1 – Anja Rebecca
A simplicidade que é só
com o que se pode ter uma genuína vontade de vida pura, transformadora. A
aposta gratuita de que eu talvez tanto precisasse, e talvez nem tanto, mas que
não tinha sido encontrada em nenhum lugar do peito até então; “Vê se toma
coragem e fala isso que você me disse, vai ser muito importante!”.
Conversa 2 – Thiago Potter
Explicações mais
integrais, e consistentes, de quem estava na primeira Assembleia e ao lado de
todo o processo de ocupação. Foi importantíssimo perceber o quanto eu tinha
estereotipado “os radicais que boicotaram
a assembleia e impuseram uma ocupação ilegítima”, quando na verdade eu não
sei bem o que aconteceu, mas sei que, justamente, eu ou alguém teria de ser
muito, muito bom e muito perto de/d@ onisciente para poder definir o que
aconteceu com tamanha precisão. Senti pequena a minha prepotência. Sim, olha
que novidade! Ela não estava só em “todos
os despolitizados ridículos que dizem que a FFLCH é o antro do pecado e das
drogas e a FEA a segunda casa do fascismo no mundo”, ela estava ali em mim,
naquele momento em que chamei um grupo de “eles”, agindo contra tudo que penso
e “prego”.Tá aí a principal questão, já
tão bem tratada pelo Leo Calderoni em sua carta: <>,
não são “eles” (termo que não existe, não existe, não existe, estamos falando
de seres, seres humanos e cheios de toda a luz e vida que a humanidade traz
consigo por definição. Só consigo pensar em “nós”), não são “eles” os culpados
por nada. E sim cada que fazemos, cada julgamento prepotente, cada valorização
egoística que considera o outro pequeno, ou coitadinho, ou um simples rebelde
sem causa. Sem entendimento verdadeiro, preocupado, e eu digo amoroso no
sentido de que, realmente, ainda não conheci ninguém que gostaria de ser
condenado sem direito a defesa.
Conversa 3 – Kinha
Eis que chegam os olhos
puxados, a roupa toda cor e vida, verde, florida, zen, amarela, viva, viva,
energética, pura como sempre. Mas dentro um peso que dividíamos. Ali no meio
daquelas bandeiras todas, daqueles gritos todos, daquelas discussões chocantes
com as pessoas da rua que se recusavam a nos entender, daquele não entendimento
combatido com não entendimento, que só separa as pessoas, só separa as pessoas,
não apenas umas das outras como também de seus próprios seres livres – que são
a única parte de nós capaz de nos conduzir por algum caminho verdadeiro e
verdadeiramente belo –, vendo tudo isso, morríamos.
Morríamos de não saber se
estar ali queria dizer concordar com toda a parte podre do ME que estava ali e
com toda a parte podre de tudo o que aquela egrégora produzia, de tudo o que
estava sendo dito em cada bandeira, grito ofensivo, ou no carro de som. E
morremos no caminho, numa boa parte dele.
Conversa 4 – Carol
Eis que a amiga dela,
também jornalista, também ECAna, também querida por sinal, mas que foi para lá
por motivos “acadêmicos”, de fazer um trabalho, e acabou ficando, me revela
tudo o que eu queria saber, por linhas aliás tortas, no sentido de ser algo com
que eu inicialmente não concordei. Como a todas as sabedorias que nos atingem
resistem nossos demônios e medos, precisei de um tempo para digerir e poder me
dirigir realmente. Eis o tema:
– Não gosto de que isso começou por uma
radicalização, por uma segmentação, e que tenha que ser apoiado não só
financeiramente mas também em questão das pessoas participantes, por partidos
políticos com os quais eu não sei se concordo, mas até saber não quero estar
envolvida com.
– Mas do jeito que a coisa está hoje, a gente
depende deles. Ninguém estaria aqui se não fosse por eles.
Ou seja, estava dita a
mais pura verdade. Do jeito que estamos hoje, desmobilizados, duros, insensíveis,
incomoviveis, preconceituosos, juízes habilidosos para tudo o que nos rodeia,
cegamente incapazes de olharmos para dentro uma só vez que seja e dizer ‘está
na hora de uma bela reforma aqui no meu templo’, dessa forma, precisamos
“deles”.
Precisamos de alguém que tome uma
atitude radical frente a uma situação radical à qual permitimos que a coisa se
encaminhasse. Precisamos de uma ação
controversa, talvez ilegítima, considerada ilegal, de uma provocação mútua, de
uma ação armada, militarizada, absurda, de joguinhos de poder sujamente
políticos nos quais somos marionetizados, precisamos
deles todos, para que algo aconteça. Precisamos
deles todos porque nos abstivemos, pulamos para fora do trem ao invés de pular
para dentro dele, de assumir o comando, de explicar pro motorista que ele esta
cego e tem gente que pode ajuda-lo a não sair dos trilhos.E aí, na hora que o bicho pega, precisamos
nos ver no dilema de sentar pra assistir ou pular todos juntos na frente do trem,
que já perdeu os freios, que já corre, que já tem sede de nosso sangue
indiferente.
Tá aí o problema.
Pra quem como eu não
acredita na profissionalização da política, pra quem tem nojo de partidarismo
vazio, pra quem tem medo de extremismo, pra quem duvida de toda violência, pra
quem quer mais humanidades nas relações humanas de qualquer tipo, pra quem não
engole julgamentos preconceituosos, pra quem está insatisfeito com o tipo de
representação política que temos, seja a estatal, seja a estudantil, vivamos
então essa política.
Que ela flua por nós como
quando respiramos, que escorra de nossas mãos, olhos, ouvidos, palavras, a cada
segundo. Ela não será desprofissionalizada, acertada, corrigida, transformada,
revolucionada, ela não será nada diferente do que é agora por alguma magia
externa. A única magia – e eu realmente considero isso como uma magia, linda e
maravilhosa – capaz de fazer isso está aqui. Está muito mais perto do que
qualquer livro de ficção possa supor. Está dentro de cada um que tem o poder de
simplesmente se posicionar. Se posicionar não é só votar na assembleia, apesar
de ser isso também. É viver aquilo é normalizar aquilo, em cada conversa, em
cada novo dia, dia-a-dia. Que isso seja novo e que essa flexibilidade política
que é o que eu creio que tanto falta quando alguém tatua no peito uma bandeira
que não muda, esteja em mim, e esteja em qualquer um que queira nascer para
esse novo, velho modo de fazer/ser política que está sendo ressuscitado no
mundo de agora.
De agora.
Não sei bem qual é minha
proposta para a solução mais eficaz de todos os problemas que a USP e que a
sociedade de São Paulo, do Brasil e do mundo enfrentam no momento. Obviamente
que não sei tudo isso. Duvido mas adorarei saber qual é, se alguém já chegou lá
me conte por favor J. Mas o que eu sei é que eu quero propor
aquilo que vier na minha cabeça, que eu preciso participar disso, que eu
acredito na transformação de tudo, e também do movimento estudantil, e também
da distancia burra e surda entre as faculdades, da estereotipagem, da desumanização
da política e de toda relação social. E que eu não quero só ficar chorando com
isso. Eu não quero esquecer a segurança caso o Rodas não saia ou caso a PM não saia,
como eu fiz depois da morte do Felipe. E eu simplesmente não vou deixar que
isso aconteça em mim. Se não houver
força para isso continuar e eu me tornar uma pobre formiguinha na escuridão,
tudo bem, terei tentado. Mas a grande alegria que toma conta de mim nesse
momento vem de ontem, vem desses acontecimentos históricos, vem das ocupações do
mundo, da São João, do Viaduto do Chá, da USP, da São Francisco, de Harvard.
Vem dessa nova gente fina elegante e sincera, dessa nova era. Vem de saber que
eu não estou sozinha.
E assim há toda a esperança.
You may say I’m a dreamer,
But I’m not the only one.
I hope some day you will join us,
And the world will be as (the) one (it really is).
Não sei porque foi tão estranho como o quebrar de um jarro que não se queria muito.
Estranho como o som surdo e totalmente apático da abelha morta cuja picada se deseja mais que qualquer veneno, cujo sabor de ferrão na língua só se pode esperar que seja todo o mel existente, imaginável, inimaginável - se é que existe, essa terceira modalidade. E última. E última.
Última como foi essa resgataria maravilhosamente abençoadora da alma minha.
Naquele dia em que o mar me engoliu,
e eu deixei-me ir por tua boia magra.
Por tua mão sábia e então tão viva.
Por tua juventude.
Por toda a juventude,
que ali nos coube. Em que ali coubemos, eu sendo criança de novo como sempre não consigo esconder de nada - e nem gostaria, credo!
Quando essas malditas serpentes desse corpo tão livre e grande, tão materializado, tão imunda e impiedosamente carnal em todos os seus poros arreganhados, quando todas elas de Medusa me asfixiaram envernizando-me as cordas vocais, tocastes.
Fez-me música o bailar dos nomes, e num vapor voltei à vida.
Ah, vida.
Pude mais sorrir, pude me sorrir. Só rir. Só.
Só e parece que gosto de esquecer essa parte. Muito reconfortante é essa tenebrosamente fantasmagórica ilusão de que nalgum dia se pode estar junto, se pode ser sendo fundido a alguma massa estranha. Porque a sensação esquisita de pertencimento com que tua linda mente já então me abocanhara foi mais pesadamente fincada na terra do que naquela noite se pôde supor.
Fatidicamente, te vi acorrentar ao pé da cama uma criança. Te vi amonstranhar-se em silêncio e vaporífera sabedoria, te vi vencendo o vencedor ensanguentado, trazido aos berros por fora do carro. Te vi apequeninar-se sem que eu soubesse sentir. Sem que eu soubesse me bem-sentir.
É que (perdoe-me parafrasear Cupim) a mim, bastante provavelmente, não foi dado o direito de escolher a conversa com a realeza.
Não, não, senhor.
Não senhor.
Senhor.
Prefiro tudo que corre em riscos, prefiro tudo que bambeia nos ares, só a isso consigo me ligar verdadeiramente, só desse vento áspero consigo chupar o sangue.
Esse não-sei-que que te roubou daqui das nuvens divinas onde brincávamos de bonecos a vida, Simba, que te rolou pelo desfiladeiro implacável do envelhecimento, que pintou com lápis de não cor, de cinzas e metal, pesado metal tóxico e assombroso, que te pintou,
foi isso que quebrou aqueles instantes em que nos vimos. Avatares.
Talvez eu sinta-me melhor culpando ao meu mito do pertencimento. A essa minha fraqueza que é deixar-me invadir pela vontade de ter um nome que não me cabe, de ter um lugar, de que as pessoas cabem nas coisas definitivas, nas definições. Assustador. Eca. Acordada nunca quereria algo assim, mas sofro de viver num plano sonâmbulo.
E foi talvez um tropeço desse mítico legado, que ainda te sustentaria o pedestal se pudéssemos mais, que fez ressoar até agora o bater sonoro da porta cósmica. Fostes-te, em ti não está mais a confortável juba. e visivelmente, sinto medo.
De que tenhas morrido o que deixastes a secar. Vento.
Parto, parto, avisando ao mundo que venta forte aqui no berço onde dormirei embalada pela Guerra Civil Espanhola.