quarta-feira, outubro 27

Ela ganhou um diário de presente.

Tudo bem, sem presunção.
Não era um diário e apenas um caderno em branco.
Não era ela e apenas eu.
Na verdade, não se sabe nem mesmo se foi um presente ou um achado. Talvez uma daquelas heranças do destino, que caem na cabeça de algum desavisado no dia seguinte da sua grande decisão de não ficar mais esperando por elas.
Seja qual for o título certo, caiu em suas mãos frágeis de criança sedenta de mundo um montão de folhas, limpas e pautadas, charmosamente unidas por um fio rosa de cetim que faz lembrar até hoje o cheiro de vó da casa onde a diversão foi sempre tão lei quanto o amor.
E ela o abriu, mergulh. [calma; agora voltando para a decisão de que era apenas eu, porque era mesmo afinal de contas]. Eu o abri, mergulhando nas páginas tão virgens quanto o que eu conhecia da vida ou de mim. E foi lindo aquele amor à primeira vista, e foi instantâneo. E a dona do cheiro da casa mágica e maluca me ensinou a bordar os rabinhos de porco no começo e no final do elefante, e me ensinou a desenhar o nome mais bonito do mundo, e me contou que era meu.
Desde então eu possuí esse caderno, esse diário, muito mais do que eu pensava. E agora quando ele está prestes a se fechar (queira Deus que tardiamente), certamente bem depois de vários outros que as velhinhas donas de outras casas cheirosas deram para os seus pacotinhos, é que dá pra ver o quanto ele foi usado, rabiscado, castigado pelos risos ferozes e pela brutalidade das chuvas salgadas abafadas no travesseiro.
O tempo inteiro,mesmo quando escrever fisicamente foi ficando pra depois e eu pensei ter trancafiado o caderninho em algum baú empoeirado do quarto também cor-de-rosa que só pode ser o seu lugar, ele estava sendo usado. A todo momento, numa silenciosa argumentação travada comigo a cada dia.

Nele eu escrevi minha infância.
Tchau, caderninho. E muito obrigada.

terça-feira, outubro 5

E eu

Querendo, numa esquina qualquer desses caminhos que a vida ou o "acaso" escolhem pra gente, topar com um anjo, um assim bem inesperado, que presenteie meu sorriso com uma asa que traz a tiracolo. Asa sua, primeira, estimada, roubada de um canteiro de secar asas num subúrbio da sua cidade, inestimável, cintilante, recem comprada, que transpire a cada bater a vasta experiência cravada nos detalhes-defeitos de suas penas tortas.
E pensando que ele silencioso apenas entregaria-me o divino presente, com toda a naturalidade que se imagina inerente a sua pureza angelical, e me dirá que a use bem. E que não pare de sorrir, como o par alado cujo trabalho não vai cessar nem quando a ultima pena cair. Nesse momento em sua mente ele me vera livre como a pomba que imaginou trazendo a paz de meus alvos dentes num ramalhete de esperança, eterna centelha que tudo preenche.
E, como venho querendo já há certos instantes, me dará sua mão e também o céu num beijo de despedida. Deixo o amigo momentâneo mas o carrego nas asas que eram com ele e que agora são em mim o eu que toca o mundo de cima, mundo leve e claro como num sonho, e no qual farei real qualquer desejo meu. E após ver bem tudo o que me apetece, e apreciar a beleza de muitas flores vivendo e murchando e voltando a ser Terra e famílias crescendo e outras se rasgando e corados cansados e secos, rejuvenescerem a trilha sonora tão conhecida de mais um capítulo no livro dos amores; tendo já as asas maiores que o céu que me carrega e o estômago farto de tanto devorar o banquete da vida num mundo onde pus meu coração e o fiz florescer, deixarei que ele mande em mim.
E me coloque mais uma vez no caminho de onde vim, mas no novo espaço que agora me pertence, do pleno descanso harmonioso do silencio do condomínio eterno, onde as asas brancas tentarão (quem sabe em vão) nascer em lírios, mas não eu, não.
Eu deitada verei que o que fiz foi bom, direi a meu anjo ate logo e outras palavras magicas de que o julgue merecedor, e me deixarei ate que enfim ser vento, e o tempo apenas ser.