quarta-feira, fevereiro 8


Não consigo, e verdadeiramente não desejo, deixar de me lembrar, de sentir, de ser o rugido do Leão que me rodeia e atravessa tão deliciosamente, com sua companhia tão perfeitamente silenciosa que é como se fossemos o que somos, uma coisa só, ele me revela o leãozinho que a vó cantou, que a mãe cantou, que a juba evidenciou, que o olhador de olhos apontou, ele me revela leão também e não sei se necessariamente leoa, mas leãozinho. Ele me revela assim por estar sempre tão perto e fazendo isso de todas as formas não físicas de que tive notícia. Ele repudia a obviedade do amor-toque. E continuo admirando-o. Não temo que o que sei dele não seja nada, que o dia desdobrado em milhares que anos, infestados de quimeras e galáxias que dançaram, musicaram, morreram e nasceram, não cronologicamente e sim na sua ordem magnificamente bagunçada, sentida, inventada, harmonia de improviso, de explosivo, eu não temo que esse dia nada valha. Assim nos carregamos, ele me leva e me é, os braços fundidos no carinho eterno do silêncio, das lições silenciosas, das lições. Do amor aprendiz. O nome do índio bonito que faz pintura de jenipapo no rosto é aprendiz em pataxó, mas não lembro a palavra.

Pensando bem isso é mentira.
Agora que temos uma bem possível materialização próxima dessa caminhada envolvida/envolvente (esse abraço de urso do leão que imaginescrevi é algo como a caminhada do amor que carrega o complemento desacordado pela praia debaixo de chuva, debaixo de sol, longa caminhada de naufrágio, é o sufrágio universal das almas que se elegem, aquelas duas almas uma, aquele mundo todo, a vitória), há um medo que não chamarei assim, porque não o é bem assim.
É um querer pelo temor que quase que imediatamente é sussurrado para trás, para longe, vai ventado, se desinventa. É como se a mistura que se tornou todo nosso material genético, é como se a célula-mãe que nos tornamos me ensinasse repleta de sua gordeliciosa maternidade, gorda do vazio de sempre ansiar por caber-se num novo filho, é como se essa raiz de vida me abraçasse também na praia, e a areia é uma bênção. E da esfoliação desse amor de mãe que somos eu, o Leão, a praia, desse amor de mãe desse amor (só atingindo a incondicionalidade algo merece esse nome bonito, algo atinge o poder integral dessa palavra e por isso cabe-a aqui, pelo que existe agora nessas palavras, na realidade característica de qualquer forma pensamento antes ou durante sua fase física, material, palpável, que pode vir ou não – o arrebatamento é o mesmo), disso nasce algo semelhante a uma certeza, nasce uma confiança divina. Nasce uma saudade, brota ela toda a flor de toda a pele. Pele. Sensibilidade astronômica. Dançamos esta noite nos caminhos dos céus.

                                                                    Um brinde, um show!



quinta-feira, fevereiro 2

Lidia Luz: Nossa Senhora de Nazaré, um colar perfumado

Lidia Luz: Nossa Senhora de Nazaré, um colar perfumado: Virgem de Nazaré, Mãe de concórdia Derrama sobre nós misericórdia! Virgem de Nazaré, luz que nos guia, Ave Maria! Ave Maria! Virgem de ...

terça-feira, janeiro 31

Raphael Rezende Comenale diz:

dois lados de um mesmo
sonho,
riso choroso
ou
choro risonho?

por onde andar
que ande a passeio,
e ao pensar,
que seja um devaneio.

escreva alguma coisa
ou não diga coisa alguma,
esqueça cada hora,
uma a uma,
uma a uma,
uma a uma,
flua.

Na Tua Rua


Se essa rua
Se essa rua
Fosse minha...
Eu mandava
Eu mandava
Ladrilhar.
Com pedrinhas
Com pedrinhas
De brilhante,
Só pro meu
Só pro meu amor
Passar.


 
Não quis dizer que me lembrava de ti e quando a mãe me perguntou brincando “Quem é mesmo que mora aqui?” eu desfiz o sorriso no rosto dela mentindo que não sabia. Mentindo que não te sabia, e queria enganar a quem?! Deuses!


1º: Passei na tua rua
Foi uma dessas vontades que inexplicavelmente decidem se tornar realidade sabe, depois de muitas visualizações mentais de como a coisa toda se daria e eu chegando e seria tudo muito sorridente e muito natural, nos veríamos velhos amigos depois de tanto tempo e com que bela bagagem pesaria docemente cada palavra dita, cada afeto trocado em sorrisos calmos e muitos gestos de criança, seria ótimo, seria lindo, e talvez depois algum momento de casal. Talvez as fotos em que me pude ver. Talvez tudo o que poderia ter sido. Talvezes, mas uma certeza sim. E por algum truque de música virei a esquerda num caminho que era reto, que era certo, parei.
Toquei e não estavas.
Sentei e dei-me um tempo para te esperar.
Senti muita vergonha das pessoas da rua, pensando serem todos seus amigos ou então tua família chegando à casa. Não eram. Escondi-me atrás de alguns carros. Se alguém gravou poderíamos rir juntos de tudo isso, eu, você, @ gravad@r misterios@. Ainda poderemos, diga-me quem foi! Mandaremos pro Faustão, mandaremos pra internet, ficarei conhecida como a querida medrosa do passado, a timidez da volta dos que não quiseram ir, e por isso até hoje não sabem se foram ou não.
E vi um bilhete dizendo que estavam na pizzaria, te esperando. Não quis atrasar tua família, passou a vontade. Antes da meia hora que tinha me oferecido para esperar-te, levantei-me, fui para casa.

2º: Aparecestes!
Sim, porque eu chamei.
Mas mais do que isso, sim, porque eu estava pronta e não teria vergonha de minhas roupas hippies, de meus quilinhos a mais. Senti-me humana e aí aparecestes, na exuberância quase desumana de tua fisicalidade impecável. Aí tua manifestação mais óbvia da divindade, querido curador. Pitar-te-ia num retrato, num quadro, num pôster, em paredes e paredes, quantas quisesses deixar! Deveríamos fazer fotografias um do outro, seria riquíssimo, e não é preciso! E conversamos e senti aquilo tudo um brilho só, e parece então a mim que se encontrou, e te admiro de um jeito interno que desconhecia até agora. És uma pessoa dentro desse corpo, com quanto alívio sinto essa sua profundidade na distância de uma conversa poética de depois do almoço. Sorri o resto do dia.

3º: Matei uma tal chama
Pensei que devia tentar de novo numa outra noite dessas, era um pouco mais tarde, talvez já tivesse acabado seu horário de exercício, e passei pela rua novamente. Sem pedrinhas de brilhante dessa vez, sem mirabolar finais felizes, sem as concretas projeções futuras e desesperadamente esperançosas como o era até então, a ilusão que o medo da não distância provoca, à ela o fogo. E foi o que me aconteceu, bem em frente à sua casa, um pedaço de tronco ardia. Lá onde eu quis me sentar para te esperar [e agora penso que posso estar confundindo os tempos e esse 3º na verdade foi parte do 1º, mas não me faz diferença nesse momento essa chamada ordem humana que conferimos ao tempo, uma criação imperfeita como tudo que somos nós], lá tinha um pedaço de árvore queimando. A reminiscência do que fomos, do que fui por nós dois, do que quis que fôssemos, do que sonhei mais de uma vez que ‘seríamos’, da imagem de você que morou em mim por mais tempo do que eu gosto de admitir. A verdade talvez seja que eu não quis me dedicar a me curar dessa pessoa que me aconselhava a alvejar o cachorro morto que há tempos já era esse “amor”. Talvez nunca tenha existido esse nós que eu projetei com tamanha ilusão de certeza.
E aí não me sentei. Remexi o tronco até que ele parasse de queimar. Apaguei o fogo. A sensação foi imediatamente de mesmo efeito do antibiótico, e sentia-me livre, curada, as amarras soltas, barco velejante, senti-me indo para casa. Com cada letra disso.

4º: Passeamos
Depois num outro dia qualquer de dia resolvi parar. Esperei que acabasse tua aula de inglês, te esperei pegar a bicicleta, te dei o recado do amigo da caminhonete. Impressionam-me como aí ainda me incomodavam as possíveis quaisquer formas em que pensassem para nos conectar, com o nome que pensariam dar-me em relação em você, com a possibilidade de que se tornassem verdade numa segunda mente aqueles meus desejos de “nós” que permaneceram secretos, que pena. E isso é claro que não fazia sentido nenhum, então saístes e te vi humano! Completamente humano e nu, e carregado de todas as mesmas dúvidas de nossa idade quase gêmea, das prisões que nos prendem a tantos de nós, infratores da verdade com que a criança brinca suave, pegos de primeira surpresa naquele momento em que insistimos em investir-nos de qualquer peso, que por definição não nos pertence. A criança grita por seu direito de nascer em nós. E senti a tua e como a sufocavas. Não soube então o que agora começo a sentir, que há vida além desse ‘nós’ imaginário, que realmente a fraternidade aqui pode acontecer. E que outro bom desejo para esse ano que vem.

Meu Primeiro Amor


É uma Oração

Ora, ora, ora.
Chega de novo esse novo fim de um ano imenso, turbulenta, atropeladamente, me re-atropelando das duas formas mais palpáveis, físicas, e retorcendo, invertendo, basicamente recriando muito do pouco que já armazenei desta vez. Como a prova real de que precisava e preciso para poder continuar minhas somas, minhas multiplicações, minhas contas mágicas de amor. A penitência foi a mais secreta, a mais obscura, a mais profunda prisão, da qual jamais nos divorciaremos completamente até a visita da nobre dama que palita os dentes, como hoje me disse Lya Luft num artiguinho seu. Fiquei em reclusão domiciliar, em disfarce do mundo, cortei temporariamente meu cordão umbilical com Deus, com a fonte-matriz-mãe-pai, com a natureza que eu re-descobri ser, para que pudesse voltar desejosa, voltar ansiando o primeiro ar depois do quase afogamento, que reconforta e preenche os pulmões do maior aconchego, do vislumbre da magnitude que é a chance de se viver, escancarar as portas, romper as janelas, despedaçar as amarras, bradando gloriosamente, por toda a terra, a sede de escadas, a própria humanidade: fisicamente limitada e infinitamente potente.

Fisicamente limitada.
De várias formas.
Aceitamos estar aqui, manifestos nessa forma densa, desde o momento em que cedemos o espaço atemporal de nossas luzes ao que cabe no cubículo de uma cápsula de humanidade (bela e poderosa, é verdade!).
Haverá desafios, poderá haver aprendizados.
Indrinha já me disse e não a entendi, Mãezinha já me disse e não entendi. Agora com mais esse ano, com mais essa volta saudosa, com mais um ano de estar em Maringá e coisas misteriosas me levarem ao inesperado, ao compreensível-daqui-a-pouco, algum brilho diferente pôde ser decifrado. A esfinge treme. É que volto à parte de onde partem todas as transformações efetivas – as afetivas, ao centro de toda a capacidade de uma mulher como de um homem, volto ao coração (o coração chama, e não a bomba de sangue) e ao quanto ele consegue ou não se exercitar, se doar em cores bonitas, se matar na entrega total ao outro. Em mim dessa vez, nessa vinda, a etapa da amizade-colega já escalou diversas montanhas, caiu, quebrou, vazou água salgada, e o mar moldou belos rochedos de que gosto bastante.

Faltam ainda porções imensas de aprender o amor romântico, se é que esse nome explica do que estou falando.
Agora estou pela primeira vez o mais pronta que já me senti para agradecer à chance de ter começado a aprendê-lo. Não ter vergonha de cada erro bobo e ridículo que cometi nesse pequeno percurso, já trabalhado de vento, de areia, de mar, que é o mar em que precisa se jogar qualquer coração minimamente vivo ou que se deseje vibrar como só se faz enquanto tal (Não sou eu quem me navega/ Quem me navega é o amor mar; Paulinho da Viola). Bastante doentia procurei me adequar ao instinto talvez animal, provavelmente só feio da obviedade em que se formou; gasto já ao revestir-se de previsibilidade e medo, uma fruta podre a interação – e não necessariamente os atores –, uma peça fadada ao fracasso, arquivada repetitiva e furtivamente em cada tentativa falsa de reencontro, de contorno, de junção do cristal quebrado. Acho que sei o suficiente do que falo, sei pelo menos de quem falo, e deixo às palavras a liberdade criativa que couber a quem quiser, mentalmente, traduzi-las.
mil perdões ao/à autor/a, salvei só como Kiss.jpg


Enquanto se dava esse caminho lancinante, em meio ao concurso que era essa competição tresloucada de esporte radical, na mentira feia, dura e mais crua do que eu jamais consegui ver, de temer aquela vida florida, de não me crer merecedora, de escolher não lidar com o que quer que seja que me incomoda e incomodava, incomodava, doía, revirava-me o estômago e eu varri as borboletas para baixo do tapete com medo de querer mata-las como eu me afastei do parapeito tantas vezes com medo de querer pular ao invés de me dar tempo para perceber o que era a vontade verdadeira, e respeitar o desejo de naturalidade do afastamento. Não queria deixar o futuro ser futuro, e por isso nada aconteceu inteiramente. Quebrei todas as bordas do quebra-cabeça. Auto-flagelo.
Tinha um amor aqui. Tinha sim. Tinha o amor aqui. Pulsando, implorando, sincero e entregue como se deve ser para se transformar no próprio nome. Era uma criança e era a coisa mais sábia que eu já vi. Era certeza deslizando por cada brilho de satisfação, de alegria, nos olhos. E o medo, foi sim o medo, foi sim a vontade de que o labirinto não fosse labirinto e eu pudesse ter tudo às mãos como me garantiam as rédeas da monotonia, da solidão, nas quais eu cavalgava rainha até então. Fugi do meu destino pela primeira vez de que consigo me lembrar. E não quis nem soube valorizar a fraqueza que eu não fui grande o bastante para admitir ter. Pairava a li toda a branca névoa do cisne encantado, e eu quis a maldição, eu quis a escuridão do omitir, do mentir, de comparar, de ceder ao meu primitivo querer controle, querer poder. Isso já se repetiu. Aprendi ali o erro que é ter nojo da fraqueza, o erro que é absorver a energia de aparente superioridade, que é na verdade uma das maiores ilusões que se pode criar, prisão perpétua porque engolimos a chave. Hoje sinto com cada bater de teclas desse teclado que arranco, que desintegro, que encravo as unhas em todo o caminho que essa chave sujou dentro de mim, dentro de cada partícula que escureceu em mim quando dessa tranca maldita, e regurgito esse feto assassino e sangrento de arrependimento, de mágoa, de culpa, que plantei aqui, que me afasta das chances que tenho de ser abraçada, que escrutina as ventos que tentam soprar por minhas janelas até orgulhosamente encontrar alguma sujeira que sirva de pretexto pra trancafiar toda a casa em sombra e penumbra. E poeira. Festa de teia de aranha.

Teve um outro. Mas esse aprendizado, prova escorregadia de amor, revelarei que foi meteórico. Assim o condeno ao impossível, ou só me cabe imaginá-lo no impossível porque é mesmo coisa de outro mundo. Lembra-me apenas o rosto de propaganda que vi, de quem abraça o produto e sorri, e há carinho inestimável, inexpressível em palavras humanas ainda que a coisa seja uma venda, um instrumento do diabo, há esse quê de inesgotável amor instantâneo nascido no momento de reconhecimento tácito que é esse sorriso, que é o afago resignado e querido de um animal de estimação. Chamarei ao leão, no suspiro já usual, amor meteórico de estimação.

Agora o animal instintivo de atração irresistível, de luta carniceira contra qualquer pureza remanescente não cabe mais aqui, ainda assim há amor pela criatura ser o que é, e admiração, pois ela é também beleza e não há vergonha nessa opinião. Foi amor aquilo? Agora é e posso dizê-lo livre, ufa! Provavelmente essa compreensão se traduz em fraternidade e só.
Fruto dessa mesma primavera é o amor às saudades, todas elas, e hoje principalmente essas dos primórdios, essas de cada acerto de férias, leve, rural, leviano e de cada erro meticulosamente calculado na cotidiana pressa imperfeita de uma cidade cinza que inaugurei em meu peito em germinação ainda tão iniciante. Poxa vida. Abraço meus eus de cada um desses momentos e sou tudo isso, e só posso querer bem a esses grandes mestres, ao meu primeiro amor, posso sorrir e não é mais o riso desesperado de vergonha e a vontade de dizer que nunca, aos vermes a borracha medonha com a qual quis me apagar com cada tentativa em vão de eliminar de mim essa tatuagem. É claridade amar assim, e que consigamos conservar cada chama do que fomos, do que somos, nesse ano que vem, nessa vida que vem sempre, que vem indo e voltando, que é maravilhosa pelo simples, complexo, desenhado à mão em renda virgem, pelo belíssimo fato de existirmos só, sós, e juntíssimos, numa só coisa-luz.

Obrigada, 2O11!
Maringá, 3O de dezembro de 2O11

terça-feira, janeiro 24

Rouge - Bla bla bla

Confessando-me

Antes de mais nada, vamos às evidências:


Chico Buarque - Geni e o Zepelim
"De tudo que é nego torto, do mangue, do cais do porto, ela já foi namorada... O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada. Foi assim desde menina, na garagem, na cantina, atrás do tanque, no mato. É a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos, dos moleques de internato. E também vai amiúde aos velhinhos sem saúde e às viúvas sem porvir. Ela é um poço de bondade, é é por isso que a cidade vive sempre a repetir:


Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!

Um dia surgiu brilhante, entre as nuvens, flutuante, um enorme zepelim. Pairou sobre os edifícios, abriu dois mil orifícios, com dois mil canhões assim. A cidade apavorada se quedou paralisada, pronta pra virar geleia. Mas do zepelim gigante, desceu o seu comandante, dizendo: 'mudei de ideia. Quando vi nesta cidade tanto horror e iniquidade, resolvi tudo explodir. Mas posso evitar o drama se aquela formosa dama esta noite me servir.' 



'Essa dama' era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!

Mas de fato, logo ela, tão coitada e tão singela... Cativara o forasteiro. O guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso, era dela prisioneiro. Acontece que a donzela, e isso era segredo dela... Também tinha seus caprichos. E ao deitar com homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre, preferia amar com os bichos.

Ao ouvir tal heresia, a cidade em romaria foi beijar a sua mão. O prefeito, de joelhos. O bispo de olhos vermelhos. E o banqueiro, com um milhão. 


Vai com ele, vai Geni!

Vai com ele, vai Geni! 
Você pode nos salvar!
Você vai nos redimir!
Você dá pra qualquer um!
Bendita Geni!



Foram tantos os peidos, tão sinceros, tão sentidos, que ela dominou seu asco. Nessa noite lancinante, entregou-se a tal amante como quem dá-se ao carrasco. Ele fez tanta sujeira, lambuzou-se a  noite inteira, até ficar saciado. E nem bem amanhecia, partiu numa nuvem fria, com seu zepelim prateado.
Num suspiro aliviado, ela se virou pro lado e tentou até sorrir... Mas logo raiou o dia e a cidade, em cantoria, não deixou ela dormir.

Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni!




Então, não lembro bem se foi na quinta ou na sexta série, mas lá no Arquidiocesano, a Geni foi minha professora de laboratório por um ano. Eu era uma das primeiras da lista de chamada porque meu nome começa com A, obviamente. As mesas eram organizadas em ordem numérica então eu me sentava bem na frente da Geni, e pertinho, e todos só falavam numa coisa: ela cultivava esse péssimo hábito de cuspir enquanto dava aula. E então era só disso que se conversava quando mencionada aquela aula de ciências, aquele laboratório, mais bem equipado do que o deu muitas faculdades, onde poderíamos ter aprendido coisas incríveis, mas não aprendi, fiquei ouvindo as fofocas sobre a Geni. Mesmo sem concordar, sem entender, sem ter nada a dizer, eu contribuía com minha parcela diária de baboseiras.
Agora o importante foi o dia em que algum retardado descobriu essa arte do Chico e decidiu atribuí-la à nossa própria Geni, e então todos gritavam: "taca pedra na Geni, taca pedra na Geni!..." o resto você já sabe. E eu estava junto, e eu andava junto, e eu não contradizia esse bando de retardados, mal educados, desrespeitosos, invejosos, egocêntricos e egoístas, e eu os chamava de amigos e amigas, e queria ser como eles, e alisei meus cabelos para isso, e me calei para isso, e troquei os óculos por lentes de contato para isso, e calei-me perante seguidas injustiças e participei delas, por causa dessa minha fome de popularidade (quem me alertou foi a pessoa com quem eu menos conversava, George Kawashita, irmão de Juli, muito obrigada amigo!). Um dia, na festa da Alice, saí e fomos à casa de Caio porque Giovanna o beijava quando tinha vontades. E descemos a grande ladeira pra tocar a campainha da Geni e sair correndo de madrugada, e corremos descalços pra tacar a nossa própria pedrinha especialíssima em forma de som estridente na nossa querida mestra Geni. E eu dei risada, e tirei fotos naquela noite, e me achava super linda e gostosona. Uhul, que corpo hein garota! 

Que ironia, que mentira, saber agora que tudo isso não valeu de nada.
E que a verdadeira Geni sou eu.
A vida tem mesmo jeitos muito lindos de nos apresentar às nossas próprias pessoas... 

terça-feira, janeiro 17

Cheiro de amor*


Passei do lado do quarto para ir buscar minha escova de dentes,
E foi aí que algo me deteve.

Eu não parei de andar, mas houve um reconhecimento daquela sensação avassaladora. Era um odor envolvente, calor doce, familiar, querido.
Queridos.

Vinha da porta entreaberta onde dorme se amando o casal. Onde vive se amando o casal. Não há portas fechadas para o tamanho dos sorrisos que apesar de fixos fisicamente em faces diversas são a mesma alegria. São própria e justamente uma unidade de vida. Uma vida una. Era esse cheiro de amor, inspirador, preenchedor mesmo só de ver de longe toda a harmonia com que sorriem, todo o desejo com que dançam sem exposição, sem competição, um amor puro, de criança, exemplar. Que honra tê-los nessa casa!
Gratidão.

E passada a garganta cortada pela pasta de dente, vos desejo uma boa noite.