quinta-feira, outubro 20

Medo de Leão

Não sei porque foi tão estranho como o quebrar de um jarro que não se queria muito.
Estranho como o som surdo e totalmente apático da abelha morta cuja picada se deseja mais que qualquer veneno, cujo sabor de ferrão na língua só se pode esperar que seja todo o mel existente, imaginável, inimaginável - se é que existe, essa terceira modalidade. E última. E última.

Última como foi essa resgataria maravilhosamente abençoadora da alma minha.
Naquele dia em que o mar me engoliu,
e eu deixei-me ir por tua boia magra.
Por tua mão sábia e então tão viva.
Por tua juventude.
Por toda a juventude,
que ali nos coube. Em que ali coubemos, eu sendo criança de novo como sempre não consigo esconder de nada - e nem gostaria, credo!

Quando essas malditas serpentes desse corpo tão livre e grande, tão materializado, tão imunda e impiedosamente carnal em todos os seus poros arreganhados, quando todas elas de Medusa me asfixiaram envernizando-me as cordas vocais, tocastes.
Fez-me música o bailar dos nomes, e num vapor voltei à vida.
Ah, vida.
Pude mais sorrir, pude me sorrir. Só rir. Só.
Só e parece que gosto de esquecer essa parte. Muito reconfortante é essa tenebrosamente fantasmagórica ilusão de que nalgum dia se pode estar junto, se pode ser sendo fundido a alguma massa estranha. Porque a sensação esquisita de pertencimento com que tua linda mente já então me abocanhara foi mais pesadamente fincada na terra do que naquela noite se pôde supor.
Fatidicamente, te vi acorrentar ao pé da cama uma criança. Te vi amonstranhar-se em silêncio e vaporífera sabedoria, te vi vencendo o vencedor ensanguentado, trazido aos berros por fora do carro. Te vi apequeninar-se sem que eu soubesse sentir. Sem que eu soubesse me bem-sentir.

É que (perdoe-me parafrasear Cupim) a mim, bastante provavelmente, não foi dado o direito de escolher a conversa com a realeza.
Não, não, senhor.
Não senhor.
Senhor.
Prefiro tudo que corre em riscos, prefiro tudo que bambeia nos ares, só a isso consigo me ligar verdadeiramente, só desse vento áspero consigo chupar o sangue.

Esse não-sei-que que te roubou daqui das nuvens divinas onde brincávamos de bonecos a vida, Simba, que te rolou pelo desfiladeiro implacável do envelhecimento, que pintou com lápis de não cor, de cinzas e metal, pesado metal tóxico e assombroso, que te pintou,
foi isso que quebrou aqueles instantes em que nos vimos. Avatares.
Talvez eu sinta-me melhor culpando ao meu mito do pertencimento. A essa minha fraqueza que é deixar-me invadir pela vontade de ter um nome que não me cabe, de ter um lugar, de que as pessoas cabem nas coisas definitivas, nas definições. Assustador. Eca. Acordada nunca quereria algo assim, mas sofro de viver num plano sonâmbulo.
E foi talvez um tropeço desse mítico legado, que ainda te sustentaria o pedestal se pudéssemos mais, que fez ressoar até agora o bater sonoro da porta cósmica. Fostes-te, em ti não está mais a confortável juba. e visivelmente, sinto medo.
De que tenhas morrido o que deixastes a secar. Vento.

Parto, parto, avisando ao mundo que venta forte aqui no berço onde dormirei embalada pela Guerra Civil Espanhola.

Um comentário:

Jess disse...

Sempre muito intenso...