Seja
a que quiseres.
Aquela,
antiga, de morte e de grito, das trigêmeas palavras bonitas, ou essa, de hoje,
aqui e agora nos rode-cerqueando e trazendo a uma vida sonâmbula e
desesperadamente perdida, toda uma humanidade bastante, mas prezo que ainda não
completamente, já desfigurada em carne e osso, desumanizada. E orgulhosa do
quão independente, autossuficientemente, assim se fez. Que coisa mais triste, e
simplesmente triste, de se saber.
Quero
chorar, quero morrer.
Cada
vez que te vejo assim tão pouco.
Cada
vez que no sufoco de minha liberdade recém renascida exasperastes por me calar.
Assim, cega, assim, tateando no escuro as estrelas, cadetes cuspidos de meu
velhos olhos – nervosos e cansados nervos de que ninguém precisa. Assim, suja
das sujeiras de você e de todos vocês também, tu me enojas. Sentes o corte com
que minha alma mergulha em toda a sua triste existência presente. A presente existência,
o presente que amassastes e jogastes fora junto com o coração que sei, que já
vi, que já ouvi boa pessoa dizendo-me que um dia palpitou.
Que
por um dia, que por até mais que vinte e quatro belas horas, sorriu e viveu teu
coraçãozinho. Foi moço bonito. Foi forte e destemido e não morreu por estar
pronto para isso, e quase. E se cobriu.
Encobriu-se
se buscando em tornando-se aqueles óculos escuros, escuros, escuros – que medo!
Eu preciso de luz! – no meio das fotografias sorridentes. Perdido. Difusamente
inserido sem jeito e sem graça, ah, sem graça nenhuma. Tão sem graça no meio de
tantas Anas. Como podes, como pôde, como houve, como pôdes?!
Como
pode. Se pode! Já! Abra já as tesouras de suas mãos, ordeno que rasgue com o
pouco de caninos que te resta o cetim com que engruvinhastes teus dedos
cálidos. Desretorce esses braços que se cruzam tão feios em teu peito. Vê,
homem, pelo amor do Deus – ele esse paizinho a que você ainda não se apresentou
por dentro (direito), vê que estás horrível! Estás gordo e é de morte!
Estás
gordo e é de morte!
É de toda a morte com que revestistes teu corpo humano até agora.
Da
morte que te invade cada vez que zombas de um infeliz por imagem.
A
cada vez que mentes. Que mentes. Como mentes. E tentas em vão te enganar. [Sim,
pois ainda vão te enganar]. E tentas em vão me enganar. [Pois eu já não me
caibo mais em ti nem se quiseres, nem se eu quiser, nem no pacotinho, nem em
nada. Não sou eu. Não sou mais eu. Sou mais, eu – sendo isso já e ainda].
É
isso, é cada segundo em que quis ser outrem e em que envergonhou-se de seu
berço, manchando de sangue podre e de carne que é só carne, igualmente podre e
morta e decompondo-se cada vez mais na geleira que teu coração mantém sempre
fria e que chamas de corpo e de vida. Manchando de sangue de feto mal sucedido,
eis o que eres, o útero de tua mãe tão jovem ainda, tão desejosa de
aprendizagem, assim manchastes e continuas, de forma análoga, teu cérebro
privilegiado.
Por
que tortuosos e assustadores caminhos vem forçando, vem enforcando essa tua
cabeça grande e pensante a se enveredar!
Tenho
tristeza. Carrego em mim essa desgraça profunda que é ter vindo de um lugar
onde o carinho que me fez morreu junto com qualquer flor de vida que possuísse.
Não sei a quem culpar.
Desejo
sempre ter alguém a quem culpar pelo roubo do brilho de olhos opacos como os
teus, pares com os quais eu já tive o desprazer de cruzar mais de uma vez.
Trazem-me àquela sensação decepcionante de criança suicida. Criança suicida.
Criança suicida. E repetindo isso já fico assustada. É que é em ti e apenas aí
que pode caber qualquer tipo de coisa a que só se consiga nesse precário
estágio evolutivo em que me encontro (?será que me encontro? Me encontras,
também, se q u i s e r e s?) chamar
de culpa. Fostes de tuas infelizes mãos remendadas de camisa de forca
força que saiu esse punhal invisível que com o tempo se aprofundou tanto que eu
não sei por onde começar a puxá-lo de volta.
Sentirás
dores horríveis, e são JUSTA-mentes elas as razões de tuas enxaquecas, os motivos
de cada agonizante des-espero que tivestes, que assolam suas tardes sempre
cheias de um vazio pequeno e agudíssimo, que preenches com teu sorriso
amarelado e completamente falso, a não ser em minhas exibições aniversariais.
Sim sim, eu quero um cachorro, paizinho, e é com vergonha e muita que assumo
ser teu o endereço que escreverei no verso do envelope desta carta. Carta
escrita com faca no coração.
Por
que é para isso que estou aqui. Para chutar tua cabeça até que consigas fazê-la
parar de doer sozinho, e assim talvez quem sabe tomara eu quero muito e
bastante que um dia consiga parar de rir de teu engatinhar. Rio por faltarem
lágrimas de qualquer outra coisa, tu me secas, e seca me terás, tudo vem a
gosto. Não penses, contudo, que eres freguês. As vezes passam, as vezes passam.
Cuidado para não olhar atrás e não me observar entre os tímidos e frágeis,
pobres homens, pobres coitados que se deixaram ser ovelha sob seu cajado
manchado, manchado, podre, podre, feio, mau. Mau homem. És hoje um homem muito
mau, escondido no sono da coruja que se deita sob plena Lua Cheia, debaixo de
seu pesado edredom de dinheiro. De fezes. De sujeira e lama, lama, lama. Por
que você não acorda e ama, querida corujinha?! Faça direito esse Direito que no
peito te lateja.
E
que lá você esteja. Onde houver vida e pulsar.
Quero
ainda e muito um dia breve conseguir te carregar.
Mas
não mando em vontades e nem pretendo.
Belas
noites.
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