É uma Oração
Ora, ora, ora.
Chega de novo esse novo fim de um ano imenso, turbulenta,
atropeladamente, me re-atropelando das duas formas mais palpáveis, físicas, e
retorcendo, invertendo, basicamente recriando muito do pouco que já armazenei
desta vez. Como a prova real de que precisava e preciso para poder continuar
minhas somas, minhas multiplicações, minhas contas mágicas de amor. A
penitência foi a mais secreta, a mais obscura, a mais profunda prisão, da qual
jamais nos divorciaremos completamente até a visita da nobre dama que palita os
dentes, como hoje me disse Lya Luft num artiguinho seu. Fiquei em reclusão
domiciliar, em disfarce do mundo, cortei temporariamente meu cordão umbilical
com Deus, com a fonte-matriz-mãe-pai, com a natureza que eu re-descobri ser,
para que pudesse voltar desejosa, voltar ansiando o primeiro ar depois do quase
afogamento, que reconforta e preenche os pulmões do maior aconchego, do
vislumbre da magnitude que é a chance de se viver, escancarar as portas, romper
as janelas, despedaçar as amarras, bradando gloriosamente, por toda a terra, a
sede de escadas, a própria humanidade: fisicamente limitada e infinitamente
potente.
Fisicamente limitada.
De várias formas.
Aceitamos estar aqui, manifestos nessa forma densa, desde o
momento em que cedemos o espaço atemporal de nossas luzes ao que cabe no
cubículo de uma cápsula de humanidade (bela e poderosa, é verdade!).
Haverá desafios, poderá haver aprendizados.
Indrinha já me disse e não a entendi, Mãezinha já me disse e
não entendi. Agora com mais esse ano, com mais essa volta saudosa, com mais um
ano de estar em Maringá e coisas misteriosas me levarem ao inesperado, ao
compreensível-daqui-a-pouco, algum brilho diferente pôde ser decifrado. A
esfinge treme. É que volto à parte de onde partem todas as transformações
efetivas – as afetivas, ao centro de toda a capacidade de uma mulher como de um
homem, volto ao coração (o coração chama, e não a bomba de sangue) e ao quanto
ele consegue ou não se exercitar, se doar em cores bonitas, se matar na entrega
total ao outro. Em mim dessa vez, nessa vinda, a etapa da amizade-colega já
escalou diversas montanhas, caiu, quebrou, vazou água salgada, e o mar moldou
belos rochedos de que gosto bastante.
Faltam ainda porções imensas de aprender o amor romântico,
se é que esse nome explica do que estou falando.
Agora estou pela primeira vez o mais pronta que já me senti para
agradecer à chance de ter começado a aprendê-lo. Não ter vergonha de cada erro
bobo e ridículo que cometi nesse pequeno percurso, já trabalhado de vento, de
areia, de mar, que é o mar em que precisa se jogar qualquer coração minimamente
vivo ou que se deseje vibrar como só se faz enquanto tal (Não sou eu quem me
navega/ Quem me navega é o amor
mar; Paulinho da Viola). Bastante doentia procurei me adequar ao instinto
talvez animal, provavelmente só feio da obviedade em que se formou; gasto já ao
revestir-se de previsibilidade e medo, uma fruta podre a interação – e não necessariamente
os atores –, uma peça fadada ao fracasso, arquivada repetitiva e furtivamente
em cada tentativa falsa de reencontro, de contorno, de junção do cristal
quebrado. Acho que sei o suficiente do que falo, sei pelo menos de quem falo, e
deixo às palavras a liberdade criativa que couber a quem quiser, mentalmente,
traduzi-las.

mil perdões ao/à autor/a, salvei só como Kiss.jpg
Enquanto se dava esse caminho lancinante, em meio ao
concurso que era essa competição tresloucada de esporte radical, na mentira
feia, dura e mais crua do que eu jamais consegui ver, de temer aquela vida
florida, de não me crer merecedora, de escolher não lidar com o que quer que
seja que me incomoda e incomodava, incomodava, doía, revirava-me o estômago e eu
varri as borboletas para baixo do tapete com medo de querer mata-las como eu me
afastei do parapeito tantas vezes com medo de querer pular ao invés de me dar
tempo para perceber o que era a vontade verdadeira, e respeitar o desejo de
naturalidade do afastamento. Não queria deixar o futuro ser futuro, e por isso
nada aconteceu inteiramente. Quebrei todas as bordas do quebra-cabeça. Auto-flagelo.
Tinha um amor aqui. Tinha sim. Tinha o amor aqui. Pulsando,
implorando, sincero e entregue como se deve ser para se transformar no próprio
nome. Era uma criança e era a coisa mais sábia que eu já vi. Era certeza
deslizando por cada brilho de satisfação, de alegria, nos olhos. E o medo, foi
sim o medo, foi sim a vontade de que o labirinto não fosse labirinto e eu pudesse
ter tudo às mãos como me garantiam as rédeas da monotonia, da solidão, nas
quais eu cavalgava rainha até então. Fugi do meu destino pela primeira vez de
que consigo me lembrar. E não quis nem soube valorizar a fraqueza que eu não
fui grande o bastante para admitir ter. Pairava a li toda a branca névoa do
cisne encantado, e eu quis a maldição, eu quis a escuridão do omitir, do
mentir, de comparar, de ceder ao meu primitivo querer controle, querer poder.
Isso já se repetiu. Aprendi ali o erro que é ter nojo da fraqueza, o erro que é
absorver a energia de aparente superioridade, que é na verdade uma das maiores
ilusões que se pode criar, prisão perpétua porque engolimos a chave. Hoje sinto
com cada bater de teclas desse teclado que arranco, que desintegro, que encravo
as unhas em todo o caminho que essa chave sujou dentro de mim, dentro de cada
partícula que escureceu em mim quando dessa tranca maldita, e regurgito esse
feto assassino e sangrento de arrependimento, de mágoa, de culpa, que plantei
aqui, que me afasta das chances que tenho de ser abraçada, que escrutina as
ventos que tentam soprar por minhas janelas até orgulhosamente encontrar alguma
sujeira que sirva de pretexto pra trancafiar toda a casa em sombra e penumbra.
E poeira. Festa de teia de aranha.
Teve um outro. Mas esse aprendizado, prova escorregadia de
amor, revelarei que foi meteórico. Assim o condeno ao impossível, ou só me cabe
imaginá-lo no impossível porque é mesmo coisa de outro mundo. Lembra-me apenas
o rosto de propaganda que vi, de quem abraça o produto e sorri, e há carinho
inestimável, inexpressível em palavras humanas ainda que a coisa seja uma venda,
um instrumento do diabo, há esse quê de inesgotável amor instantâneo nascido no
momento de reconhecimento tácito que é esse sorriso, que é o afago resignado e
querido de um animal de estimação. Chamarei ao leão, no suspiro já usual, amor
meteórico de estimação.
Agora o animal instintivo de atração irresistível, de luta
carniceira contra qualquer pureza remanescente não cabe mais aqui, ainda assim
há amor pela criatura ser o que é, e admiração, pois ela é também beleza e não
há vergonha nessa opinião. Foi amor aquilo? Agora é e posso dizê-lo livre, ufa!
Provavelmente essa compreensão se traduz em fraternidade e só.
Fruto dessa mesma primavera é o amor às saudades, todas
elas, e hoje principalmente essas dos primórdios, essas de cada acerto de
férias, leve, rural, leviano e de cada erro meticulosamente calculado na cotidiana
pressa imperfeita de uma cidade cinza que inaugurei em meu peito em germinação
ainda tão iniciante. Poxa vida. Abraço meus eus de cada um desses momentos e
sou tudo isso, e só posso querer bem a esses grandes mestres, ao meu primeiro
amor, posso sorrir e não é mais o riso desesperado de vergonha e a vontade de
dizer que nunca, aos vermes a borracha medonha com a qual quis me apagar com
cada tentativa em vão de eliminar de mim essa tatuagem. É claridade amar assim,
e que consigamos conservar cada chama do que fomos, do que somos, nesse ano que
vem, nessa vida que vem sempre, que vem indo e voltando, que é maravilhosa pelo
simples, complexo, desenhado à mão em renda virgem, pelo belíssimo fato de
existirmos só, sós, e juntíssimos, numa só coisa-luz.
Obrigada, 2O11!
Maringá, 3O de dezembro de 2O11